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Gato de Sangue

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Pata ante pata o felino singular subia a rua deserta. O manto de estrelas era a única luz da noite negra e, por isso, a lua não refletia no dorso rubro, na face preta ou nas extremidades brancas do gato.

                                  1. Gatos de três cores podem prever o futuro.

Depois de algumas quadras o animal parou, observou um prédio velho e pequeno e passou a subir as escadas laterais da construção até certo andar onde uma janela estava semiaberta.  No quarto havia pouca mobília – uma poltrona, uma mesinha, um cinzeiro e um tapete –, um homem e fumaça que saia pela abertura. O gato miou baixo pedindo por atenção, o velho virou a cabeça, soltou o cigarro e levantou-se, abriu por completo a janela e afagou o pescoço do bichano.
— Que faz aqui? Errou de casa? – olhos brilhantes o encararam, mas não houve resposta.
Pretendia continuar com as perguntas, mas intensa crise de tosse atacou-o. Arqueou o corpo por causa dos espasmos do abdômen, apoiou uma mão na batente e a outra levou a boca para limpar o sangue que cuspia, os olhos lacrimejaram e sentiu forte dor. De um momento para o outro caiu no chão, engasgou-se e morreu.

                                  2. Acredita-se que os gatos sejam capazes
                                  de ver o espectro da morte.

O homem não havia reparado, mas o gato sim, que figuras sombrias estavam naquela sala até então, que quando começou o ataque elas ficaram mais visíveis, ou ainda, que quando caiu no chão passaram a desaparecer. De fato, o gato as viu, mas não pode fazer nada contra elas, pois a morte é muito rápida...
Parecia decepcionado quando pulou da janela para o corpo imóvel, caminhou por cima dele até encarar as órbitas sem brilho e após breve observação saiu dali. Assim como veio, silencioso, ele foi e quando chegou a uma casa afastada dali, próxima a floresta, miou alto, esperou a porta abrir e se recolheu.

                                  3. Se um gato pulasse sobre um defunto,
                                  acreditava-se que este viraria um vampiro.

A cauda inquieta ia da direita para a esquerda e vice-versa enquanto encarava qualquer coisa do outro lado do vidro. Estava deitado no batente sobre uma almofada e quando a velha se colocou ao seu lado não exibiu reação, como se a ignorasse.

                                  4. Gatos tem o poder de formar tempestades
                                  com a mágica de suas caudas.

— Então, Fel, fará uma tempestade por estar de mau-humor?
Os olhos amarelos pareciam pouco amigáveis quando a encarou finalmente, mas ela já estava acostumada aquela hostilidade.
— Deveria entender que não se muda um futuro tão próximo quanto o que vê.
— Então para que serve esse dom? Por que vejo a morte, se não para impedi-la?
— Não sei, talvez devesse perguntar a algum leão.

                                  5. Segundo alguma tradição cristã perdida,
                                  os gatos teriam nascido do espirro de leões na Arca
                                  de Noé para conter a população de ratos da barca.

E como não gostava de gracejos virou o rosto para a janela novamente. Agora nuvens escuras cobriam o céu e o vento assobiava alto.
— Se eu servir-lhe por nove anos vou me ver livre disso?

                                  6. Acreditava-se que os gatos eram servos das bruxas
                                  (Idade Média) e, após nove anos de servidão eram
                                  livres e podiam tornar-se feiticeiros.

— Uma ótima pergunta. Me chamam de bruxa e isso talvez seja verdade, mas será que esses seus poderes somem quando a forma de gato é perdida?
— Não sei por que ainda faço perguntas a você, nunca me dá certezas... – e um sorriso triste fez subirem-lhe os bigodes.
— Isso se deve ao fato de não haver certeza em nada, gato tolo. – tirou uma fita do bolso e prendeu-a no pescoço do felino antes de se retirar. – Mas talvez devesse tentar ser-me mais útil, com sorte já foi contado esse primeiro ano e seu trabalho se reduz a oito anos de servidão.
Do cordão pendia um sino cujo som lembrava Fel sobre um tempo de contradição entre a felicidade e a tristeza.

Ela tinha um corpo frágil, quase nenhum dos órgãos funcionava como deveria e a sorte havia a abandonado junto dos pais que nunca conheceu. O pulmão fazia-lhe arfar várias vezes ao dia, as pernas e braços tremiam convulsivamente quando se esforçava, a febre iludia sua mente nos dias muito quentes ou muito frios, mas o coração, ah!, o coração era perfeito, na verdade inigualável. Tinha a bondade de um santo aquela pequena, generosidade e compaixão, principalmente para aqueles que eram mais miseráveis que ela, como o gato.
Ambos viviam ao lado da estrada, numa construção que, muitos anos antes de nascerem, havia sido consumida pelo fogo. Ela colhia frutas das árvores e arbustos, ele caçava ratos e pássaros, ela certa vez roubou algumas sementes que plantou na terra, ele algumas vezes roubava pão e carne. E assim sobreviviam não da maneira mais correta possível, mas do melhor jeito que conseguiam. Ela sentia-se culpada após os atos ilícitos, mas a fome e o desespero eram maiores que a vergonha, ele não se preocupava muito, já havia apanhado algumas vezes e aprenderá que a melhor solução era ser rápido e, em caso de necessidade, usar as unhas e presas.

                                  7. Gatos tem nove vidas (isso varia de sete para
                                  nove, mas eu gosto mais de nove, então é dez menos um).

Mas a sociedade não durou por tanto tempo quanto o gato e a menina gostariam. Eles não contavam os dias, pois isso não importava para nenhum dos dois, mas pareceram tão breves aqueles momentos. Sentiam-se como recém-apresentados, como se as fugas, as tormentas, as lágrimas, as conquistas fossem todas falsas, frutos de uma mente perdida. E quem dera assim fosse, pois então, talvez o gato não sentisse tanto a perda.
Numa manhã particularmente fria em que nem o Sol ou o corpo um do outro servia de fonte de calor, febre estranha a atacou e fez empalidecer. Ele trouxe tudo que conseguiu roubar, mas ela não tinha vontade sequer de comer. O rosto estava cansado, a respiração estranhamente lenta, assim como o coração que era quase inaudível, e os olhos lacrimejantes. Ela mexia os lábios com esforço e dizia: “Sinto muito” e “Eu vou primeiro”. O gato lambia seu rosto e mordiscava sua mão para que ficasse acordada, mas ela sentia sono, tanto sono e um sono tão pacífico que não resistiu.
Na primeira badalada do sino um miado forte foi escutado na igreja, o padre virou-se assustado para encontrar um gato insistente que o levou ao corpo frio de uma menina. Um funeral informal foi realizado, do tipo que era dado a indigentes, e enquanto um caixote de madeira rude era içado até as entranhas da terra o gato ficou sentado sobre uma das sepulturas. Quando o ritual se encerrou o sacerdote voltou-se para o gato que pareceu dizer com o olhar algo como “muito bem, obrigado”, mas disso o homem não tinha certeza.


                                  8. Acreditava-se que dois gatos brigando durante uma
                                  procissão/enterro significava que o céu e inferno
                                  disputavam pela alma do defunto, enquanto que um gato
                                  sentado sobre um túmulo significava que a
                                  alma dessa pessoa estava no inferno.

Fazia alguns anos desde o enterro do anjo, mas a memória continuava vívida, como um sonho de alguns segundos atrás. Agora o gato andava e vivia sem tentar ligar-se a nada ou ninguém e quando balançava o corpo um pouco podia ouvir um som que o lembrava de uma felicidade amarga, mas boa o suficiente para ele.

Lais Nogueira Cardoso

Dedicado a Lucimara Carvalho de Brito, em comemoração ao seu décimo sexto aniversário.
Conto do gato de três cores.
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